domingo, 20 de abril de 2008

O Aniversário

"Hoje, há trinta anos, estava eu num café do Boulevard Saint Michel. Chovia, havia copos de cerveja sobre a mesa, e alguém tinha posto a Anne van der Lowe a cantar na jukebox."
A amiga não se mostra por aí além interessada em recordações do passado e o mais certo é nunca ter ouvido falar na Anne van der Lowe. Até mesmo ela, depois dessa breve memória que sempre recorda quando faz anos, nunca mais se lembra de ter ouvido falar dela, se calhar já nem canta, se calhar já morreu, se calhar existiu apenas naquele brevíssimo instante dos seus vinte anos.
Um instante de que recorda todos os pormenores, o cheiro a cerveja, as pessoas a sacudirem os guardas-chuvas, o ar cinzento da tarde, a humidade entranhada no guarda-roupa, a voz dele fazendo-a rir, "Sabes que a minha mãe diz que nunca há-de experimentar cerveja porque não gosta?", as moedas em cima da mesa para quando o disco terminasse.
"Ainda há jukeboxes no cafés?", pergunta, mas a amiga não sabe, quando era nova ainda gostava dessas coisas, mas agora café só de manhã para beber a bica antes de ir trabalhar, e o café do Toninho nunca teve luxos desses.
Mas lá vai dizendo que já não deve haver, pelo menos cá, "Agora o pessoal, se que música, vai para as discotecas, com os djs e coisas assim."
De repente, deu consigo a ter saudades das jukeboxes, que disparate, pensa, e lá regressa ao café Boulevard Saint Michel, trinta anos antes, e à cantiga da Anne van der Lowe, e ao cheiro da cerveja, e à chuva que não parava, e à voz dele ao seu lado.
Recorda tudo, absolutamente tudo, aqui há tempos, quando foi a Paris, em trabalho, até conseguiu ir dar ao mesmo café, lembra-se mesmo de ter pensado com alívio, "Pelo menos, ainda não o transformaram num McDonald ou num pronto-a-vestir". Lembra-se de tudo. De tudo - menos da cara dele.
Da voz, claro, e das mãos e do riso dele, e das palavras que lhe disse, e de todos os dias em que desenhavam, nas mesas de todos os cafés, o mapa da felicidade eterna que, estavam absolutamente certos, lhe pertencia por direito. Só a cara desapareceu por completo da sua memória.
"Quando é que desaparecem da nossa memória os rostos daqueles que amámos na nossa juventude?", pergunta, e a amiga fica a olhar, espantada, mas de repente, fica também ela a pensar que, ainda ontem, quis recordar o rosto da mãe e não foi capaz, ela que sempre se lembra de ter tido o seu retrato à cabeceira, que sempre recorda os natais de criança.
Quer afastar a ideia e diz que o que mais importa é guardar as pessoas no nosso coração, e remata a conversa com uma daquelas banalidades que se utilizam nestes casos, "É a lei da vida.", ou outra frase no mesmo género, o que interessa é que está na hora de saída e o patrão não merece nem mais cinco minutos de trabalho extra.
Ela prepara-se também para sair, pega no casaco e na mala, e olha para o relógio para não chegar atrasada a casa dos sogros, onde o marido e os filhos a esperam para o jantar de aniversário.
Se calhar até é capaz de perguntar ao marido: "Lembras-te de mim quando eu tinha vinte anos?", se calhar ate se vão todos rir da sua maluquice.
Se calhar, no meio daquela alegria, até a sogra se esquece e é bem capaz de agarrar num copo de cerveja.

[Alice Vieira]

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