sábado, 3 de maio de 2008

Acabar




Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

[Cecília Meireles]

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Reservado ao veneno

Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequenas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é dia para homens
não é para palavras.


[Reservado ao veneno, António José Forte]

domingo, 20 de abril de 2008

O Aniversário

"Hoje, há trinta anos, estava eu num café do Boulevard Saint Michel. Chovia, havia copos de cerveja sobre a mesa, e alguém tinha posto a Anne van der Lowe a cantar na jukebox."
A amiga não se mostra por aí além interessada em recordações do passado e o mais certo é nunca ter ouvido falar na Anne van der Lowe. Até mesmo ela, depois dessa breve memória que sempre recorda quando faz anos, nunca mais se lembra de ter ouvido falar dela, se calhar já nem canta, se calhar já morreu, se calhar existiu apenas naquele brevíssimo instante dos seus vinte anos.
Um instante de que recorda todos os pormenores, o cheiro a cerveja, as pessoas a sacudirem os guardas-chuvas, o ar cinzento da tarde, a humidade entranhada no guarda-roupa, a voz dele fazendo-a rir, "Sabes que a minha mãe diz que nunca há-de experimentar cerveja porque não gosta?", as moedas em cima da mesa para quando o disco terminasse.
"Ainda há jukeboxes no cafés?", pergunta, mas a amiga não sabe, quando era nova ainda gostava dessas coisas, mas agora café só de manhã para beber a bica antes de ir trabalhar, e o café do Toninho nunca teve luxos desses.
Mas lá vai dizendo que já não deve haver, pelo menos cá, "Agora o pessoal, se que música, vai para as discotecas, com os djs e coisas assim."
De repente, deu consigo a ter saudades das jukeboxes, que disparate, pensa, e lá regressa ao café Boulevard Saint Michel, trinta anos antes, e à cantiga da Anne van der Lowe, e ao cheiro da cerveja, e à chuva que não parava, e à voz dele ao seu lado.
Recorda tudo, absolutamente tudo, aqui há tempos, quando foi a Paris, em trabalho, até conseguiu ir dar ao mesmo café, lembra-se mesmo de ter pensado com alívio, "Pelo menos, ainda não o transformaram num McDonald ou num pronto-a-vestir". Lembra-se de tudo. De tudo - menos da cara dele.
Da voz, claro, e das mãos e do riso dele, e das palavras que lhe disse, e de todos os dias em que desenhavam, nas mesas de todos os cafés, o mapa da felicidade eterna que, estavam absolutamente certos, lhe pertencia por direito. Só a cara desapareceu por completo da sua memória.
"Quando é que desaparecem da nossa memória os rostos daqueles que amámos na nossa juventude?", pergunta, e a amiga fica a olhar, espantada, mas de repente, fica também ela a pensar que, ainda ontem, quis recordar o rosto da mãe e não foi capaz, ela que sempre se lembra de ter tido o seu retrato à cabeceira, que sempre recorda os natais de criança.
Quer afastar a ideia e diz que o que mais importa é guardar as pessoas no nosso coração, e remata a conversa com uma daquelas banalidades que se utilizam nestes casos, "É a lei da vida.", ou outra frase no mesmo género, o que interessa é que está na hora de saída e o patrão não merece nem mais cinco minutos de trabalho extra.
Ela prepara-se também para sair, pega no casaco e na mala, e olha para o relógio para não chegar atrasada a casa dos sogros, onde o marido e os filhos a esperam para o jantar de aniversário.
Se calhar até é capaz de perguntar ao marido: "Lembras-te de mim quando eu tinha vinte anos?", se calhar ate se vão todos rir da sua maluquice.
Se calhar, no meio daquela alegria, até a sogra se esquece e é bem capaz de agarrar num copo de cerveja.

[Alice Vieira]

A Flor do Muguet


— Sabes — dizia Florinda ao Rapaz de Bronze — em frente da minha janela há uma tília. E no Verão, quando durmo com a janela aberta, antes de adormecer olho para a tília e vejo as folhas da tília a dançar, vejo-as fazer sinais umas as outras e oiço-as conversar, e oiço um murmúrio de segredos. E de dia conto isto as pessoas. Mas todos dizem; — as folhas não conversam nem fazem sinais. E o vento que faz mexer as folhas.
— Florinda — disse o Rapaz de Bronze — vou-te ensinar um grande segredo; quando tu vires uma coisa acredita nela, mesmo que todos digam que não é verdade.

A Flor do Muguet, branca e pequenina, leve como a brisa, dançava todas as danças. E as suas campânulas baloiçavam perfumando a noite.
— Se eu fosse flor — dizia Florinda — queria ser a Flor do Muguet e estar escondida na erva dentro de duas folhas verdes.
— A Flor do Muguet— disse o Rapaz de Bronze — esconde-se entre as suas folhas para que ninguém a veja porque não quer ser colhida. Mas o seu perfume espalha-se no ar e por isso as pessoas caminham atrás dele e descobrem e colhem a flor escondida.


[O Rapaz de Bronze, Sophia de Mello Breyner Andersen]

terça-feira, 15 de abril de 2008





É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.
*
[Pedro lembrando Inês, Nuno Júdice]

Morre Lentamente...



Morre lentamente quem não viaja, quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos,
quem não muda de marca, não arrisca vestir uma nova cor
ou não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.

Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o negro no branco e os pontos nos "is"
em detrimento de um remoinho de emoções
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte
ou da chuva incessante.

Morre lentamente quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo
exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar.


[Pablo Neruda]

Eu quero ser maça!

"Quando perguntaram a Joaninha o que é que ela queria ser quando fosse grande (há sempre um dia em que um adulto nos faz essa pergunta), ela não hesitou:
- Quando for grande quero ser maçã!
Disse aquilo com tanta convicção que a mãe se assustou:
- Maçã?
A maior parte das crianças quer ser: a) astronauta; b) médica/o; c) corredor de automóveis; d) futebolista; e) cantor/a; f) presidente. Há algumas respostas mais originais: "Quero ser solteiro", confessou o filho de uma amiga minha. Conheço uma menininha que foi ainda mais ambiciosa:
- Quando for grande quero ser feliz.
Mas maçã? Joaninha, meu amor, maçã porquê? A pequena encolheu os ombros: "são tão lindas". Passaram-se os anos e a mãe pensou que ela se tinha esquecido daquilo. Mas não. No dia em que entrou para a escola, a professora fez a todos os meninos a mesma pergunta:
- Ora então vamos lá saber o que é que vocês querem ser quando forem grandes...
Astronauta. Piloto de Fórmula 1. Cantora. Futebolista. Barbie (há muitas meninas que querem ser a Barbie). Médica. Modelo. Actriz. E tu, Joaninha?
- Eu quero ser maçã!
Risos. Os outros meninos começaram a fazer troça dela:
- Maçã raineta! Maçã raineta!...
- Se a Joaninha pode ser uma maçã, senhora professora, eu quero ser um avião...
Ela nem fazia caso. Quando crescesse havia de ser uma maçã, sim, uma maçã verde, luminosa, tão perfumada como uma manhã de Primavera.
Poucas vezes, porém, conseguimos cumprir os nossos sonhos. Joaninha transformou-se numa mulher bonita, estudou, e fez-se professora. Era uma boa professora. Só quem conseguisse olhar para dentro dela poderia saber que, bem lá no fundo do seu coração, Joaninha sentia ainda aquela grande vontade de se tornar maçã. O tempo passou - o tempo, aliás, está sempre a passar, nós é que nem sempre damos pela sua passagem. O tempo passou, portanto, e Joaninha envelheceu. Não casara, não tinha filhos, envelheceu sozinha.
Foi numa tarde de Outono. As árvores tinham perdido as folhas. O sol, cansado, com aquela cor macia que tem o mel, desaparecia no horizonte. Joaninha estava a dormir, sentada numa cadeira de baloiço. na varanda da sua casa, quando apareceu um anjo e a levou. Ela não percebou logo onde estava. Foi preciso que Deus lhe tocasse nos ombros com a ponta dos dedos:
- Acorda minha filha - disse-lhe Deus -, já chegaste.
Joaninha abriu os olhos e viu o que já antes via com os olhos fechados: os anjos passeando num grande jardim, os peixes flutuando no ar, juntamente com os pássaros, e aquele velho de barbas brancas, ao seu lado, sorrindo como só Deus sabes sorrir.
- Meu Deus - perguntou-lhe - porque não me deixaste ser maçã?
- Ser maçã é difícil, Joaninha - disse-lhe Deus. É preciso crescer muito para se ser uma boa maçã. Tu cresceste. Agora, sim, serás maçã.
Alguns anos depois, um menino descobriu no pomar da casa dos seus avós uma maçã de um brilho intenso. Cheirou-a: cheirava a manhãs lavadas, cheirava a Primavera, era um cheiro que se colava aos dedos. O menino comeu a maçã e sentiu-se feliz. Naquela tarde disse à avó:
- Sabes, acho que quando for grande quero ser maçã!"

[Estranhões & Bizarrocos (estórias para adormecer anjos), José Eduardo Agualusa]